OLHOS DE CORUJA


O velório dos meus pais foi um dos momentos pelos quais eu nunca me esqueci.
Eu era apenas um menino de sete anos, quando eu tinha recebido a notícia trágica sobre o acidente de carro, o qual trucidou os meus pais. Assim me tornando tão cedo um menino órfão e solitário.
Não me restou escolha alguma na vida, então eu fui levado pelo meu tio Jefferson para morar com ele em sua humilde casa no interior de uma cidade pequena.
Meu tio nessa época tinha apenas 30 anos de idade e ele não havia constituído família, como não constituiu até hoje.
A sua casa era bagunçada, havia roupas espalhadas por todo o cômodo da casa. Sobre o sofá da sala havia centenas de livros jogados, a maioria deles eram livros científicos.
-Bem vindo a sua nova casa, garoto!
Ele disse, esfregando fortemente o topo da minha cabeça.
Eu olhei para cima, mirando seriamente o seu rosto, enquanto segurando um carrinho de brinquedo que eu havia ganhado de presente do meu pai, quando eu tinha completado sete anos de idade.
-Eu vou morar aqui para sempre?
Perguntei-o seriamente.
Ele ergueu as suas sobrancelhas e sorriu sem graça, explicando-me. – Para sempre não. Um dia você irá crescer e terá uma casa muito melhor do que a minha.
Olhei para os quatro cantos sombrios e empoeirados da casa. A sua residência precisava urgentemente de uma vasoura e um espanador de pó e precisava também de alguém que tivesse disposição para encarar uma rotina de faxina naquela habitação.
Coitado do meu tio. Ele não era um porco, mas parecia que morava em um chiqueiro.
Comecei a frequentar uma escola a quinze minutos da minha nova residência.
Eu ia caminhando e voltava caminhando todos os dias. Até o dia que o meu tio concertou uma bicicleta velha e me presenteou no meu aniversário de dez anos.
Ele se sentiu orgulhoso por presenteando-me com aquela bicicleta ancestral. Tio Jefferson havia pintado-a de preta. Era uma bike diferente, pois ele havia a personalizado com peças baratas.
Essa bike me serviria até eu completar o ensino médio.
-Nossa! Obrigada Tio Jeferson! – agradeci-o e segurei o guidão da minha bicicleta. - Agora eu irei chegar mais rápido na escola.


Meu tio vivia trancado em uma sala fechada, a qual ele tinha feito de escritório. Onde havia vários livros de pesquisa, um microscópio e um monóculo.
Às vezes ele parecia ter uma cara de maluco, com o seu cabelo bagunçado e seus óculos de grau inclinado em seu rosto.
Ele nunca falou em ter esposa e filhos. Acredito que as suas pesquisas cientificas eram mais importantes que uma família de verdade.
-Como você está indo na escola?
Ele perguntou-me assim que sentei diante da mesa, na hora do jantar. Havia poucos objetos sobre ela.
-A professora disse que eu estou péssimo em todas as matérias.
Confessei e olhei tristemente para baixo e o xadrez da toalha de mesa às vezes se movimentava diante dos meus olhos.
Ovos mexidos e macarronada eram nossas refeições de rotina.
O meu tio puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado, os seus dedos acariciaram a minha cabeça. – Não fica assim não. Você está tendo dificuldade para aprender as disciplinas?
Sacudi a minha cabeça, informando que sim. Cruzei os meus braços em cima da mesa e encostei o meu queixo nas costas da minha mão. O meu olhar era triste e melancólico, eu desejava ser uma criança inteligente como muitas outras na minha escola.
- Eu juro que eu tento aprender tudo, mas eu não consigo.
Uma lágrima desceu lentamente pelo meu rosto e o meu tio me abraçou fortemente.
A cortina na janela ergueu com o toque suave do vento sob ela.
-Não chore, Otto! Eu juro que eu vou resolver esse problema.
O meu tio informou-me, com o seu coração sangrando. Ele não gostava de ver-me triste ou deprimido por causa das minhas limitações em aprendizagem.



A partir desse dia, o meu tio passou a pesquisar alguns livros, e ele descobriu sobre a mitologia das corujas, onde elas eram consideradas o símbolo da sabedoria.
Ele passava várias noites em claro, lendo e relendo sobre elas, enquanto eu dormia em meu quarto.
Então o meu tio olhou para a imagem de uma coruja no livro, ele removeu os seus óculos de seu rosto e disse em voz audível.
-Eu tive uma ideia!
Ele passou a caçar corujas durante a noite em uma floresta próxima a nossa casa.
Porém, ele levou algumas semanas para conseguir uma.
Mas assim que ele conseguiu capturar esse pássaro vivo, ele o trouxe em um saco preto e colocou dentro de uma gaiola de ferro.
No dia seguinte, eu vi aquele animal claro com olhos enormes e amarelos.
-O que é isso, Tio Jefferson?
Perguntei um pouco assustado.
Ele sorriu para mim, e respondeu.
-Essa é uma coruja. Eu a capturei ontem à noite.
Olhei novamente para a coruja, e ela também olhou para mim. Então a coruja voou dentro da gaiola e eu levei um tremendo susto. O qual fez o meu coração pular com mais intensidade.
-Eu tenho medo dela, tio Jefferson.
Corri para abraçar a parede ao meu lado.
-Não tenha medo, Otto. Um dia você será como ela!
Olhei para cima e encarei o meu tio. – Como assim? Um dia eu serei como ela?
-Você terá a sabedoria de uma coruja e nunca mais você irá ser reprovado nas disciplinas de sua escola. Você será o garoto mais inteligente e admirado em seu colégio.
-Mas como eu conseguirei ser tão inteligente como as corujas? – insisti.
-Eu vou encontrar uma maneira para que isso seja possível, Otto. E eu farei isso para ajudar você.
A sua mão tocou levemente no meu ombro.
-Acredite nisso!




-Tudo pronto! Sente-se aqui, Otto!
Tio Jefferson ordenou, enquanto ele estava em pé em seu escritório. Então eu sentei em uma cadeira ao lado da mesa.
A gaiola da coruja estava em cima da mesa, e ela estava voando de um lado para o outro, desinquieta em seu cárcere obrigatório.
Sobre a mesa havia uma seringa e luvas.
Eu confesso que quando os meus olhos observou a seringa, o meu estomago sofreu uma alteração nervosa. Então eu comecei a ficar pálido.
-Por que essa seringa?
Perguntei para ele.
O meu tio olhou amavelmente para mim e sorriu discretamente, respondendo.
-Não seja medroso, garoto! Isso é apenas uma seringa.
-Sim, mas por que ela está aqui?
Os meus olhos se tornaram maiores, o medo havia modificado a minha face.
Tio Jefferson segurou fortemente a minha mão.
-Otto, você confia em mim?
O seus olhos buscavam uma resposta, enquanto ele olhava fixamente para o meu rosto.
-Acho ...que... sim.
O meu rosto estava pálido ainda.
-Então, não faça perguntas e deixe-me terminar o meu trabalho.
Ele virou-se de costas e caminhou para a gaiola, pegou a coruja entre os seus dedos. Tio Jefferson acariciou o animal por alguns instantes, se mostrando familiar a ela.
Logo em seguida ele segurou a seringa com a sua mão direita.
A coruja murmurou assim que a agulha da seringa penetrou a sua pele e parte de seu sangue escuro veio para dentro da seringa.
Tio Jefferson colocou a coruja de volta em sua gaiola. Ele olhou para mim e sorriu abrandado. Porém, a seringa ainda estava na sua mão direita, ele pegou um frasco transparente e a seringa absorveu parte do liquido azul contido nele.
O sangue escuro da coruja havia sido misturado com o liquido azul. Esse líquido azul era uma fórmula que o meu tio havia desenvolvido durantes as suas pesquisas noturnas.
Ele caminhou em direção à cadeira a qual eu ainda estava sentado.
A sua mão direita gentilmente alcançou o meu ombro direito.
-Agora é a sua vez.
Ele disse e estendeu a sua mão para mim.
-Dê-me o seu braço!
Os meus olhos se tornaram maiores, eu o encarava com nenhuma corajem para fazer o que ele estava me sugerindo.
-O meu braço?
Questionei sem pensar.
-Sim, o seu braço. – A sua voz estava baixa e determinante.
- O que você irá fazer com ele?
Tentei abraçar o meu próprio corpo, enquanto eu estava usando roupas velhas. Eu não tinha a quem pedir socorro a não ser a mim mesmo. Eu precisava me sentir seguro naquele instante.
Tio Jefferson obteve uma expressão cansada e suspirou olhando para o teto do escritório.
Ele encarou-me novamente, proferindo.
-Otto, se você realmente confia em mim, você irá depositar o seu braço na minha mão esquerda agora.
A sua voz tornou intransigente.
Olhei para a coruja dentro da gaiola. Ela observa-me como eu havia a observado minutos antes. Talvez ela estivesse sentindo pena de mim. Isso porque eu deveria ser o próximo a experimentar a agulha da seringa.
Lentamente eu depositei o meu braço direito na mão esquerda de Tio Jefferson. Ele apertou o meu antebraço e a minha veia sanguínea alargou.
Um pequeno gemido saiu dos meus lábios logo que a agulha da seringa beijou a minha pele. E Tio Jefferson empurrou todo o sangue da coruja contido na seringa para dentro da minha veia sanguínea.
Ele retirou a agulha do meu braço, quando todo o sangue da coruja havia encontrado o meu corpo.
-Pronto!
Ele sorriu suavemente e beijou o topo da minha cabeça, exclamando.
-Você é um garoto obediente e corajoso!
-O que irá acontecer depois disso?
-Eu não sei ainda. – encarou-me. - Isso é somente uma experiência. Você está sentindo alguma coisa diferente no seu corpo?
-Não, eu estou apenas com um pouco de sono.
-Então vá se deitar, eu ficarei observando você. Caso você precise de mim, eu estarei por perto.

Algumas horas depois, eu abri os meus olhos e vi o teto rodando acima de mim. Tudo estava meio turvo e obscuro.
Tentei segurar o colchão da minha cama com os meus dedos, mas eles estavam dormentes. Eu mal sentia o meu corpo, parecia que eu estava levitando.
-TIO JEFFERSON!
Gritei desesperado.
Ele veio correndo da sala e atravessou a porta do meu quarto com euforia. Os seus pés descalços deixaram marcas no chão. O jornal caiu de seus dedos e abraçou o piso.
-O que aconteceu garoto? Você não está se sentindo bem?
A sua mão tocou o meu braço direito e a minha temperatura estava normal.
-Eu estou me sentindo ótimo!
Respondi olhando para o teto do meu quarto. Tio Jefferson arregalou os seus olhos assim que ele olhou para o meu rosto e viu os meus olhos girando, eles haviam mudado de cor, agora eles estavam amarelos com enormes meninas pretas.
Os meus olhos estavam idênticos aos olhos das corujas.
-Meu Deus! Funcionou!
Tio Jefferson exclamou emocionado. Ele removeu os óculos de grau do seu rosto e sorriu para mim. Aliviado
-Funcionou meu garoto!




Dez anos depois...


Na entrada da escola, eu caminhava despreocupado, indo em direção ao portão principal da instituição de ensino.
Eu usava calças, camisa e tênis pretos. E sobre os meus olhos estavam o meu óculos escuros, o qual não me abandonava nunca. Eu carregava uma pilha de livros abaixo do meu braço esquerdo.
Essa era um punição que a maioria dos alunos tinha que pagar enquanto frequentavam a escola. Suportando o peso dos seus materiais didáticos todos os dias da semana.
O dia estava quente, mas as minhas roupas escuras fazia o meu corpo sentir ainda mais calor. Os meus cabelos negros combinavam com a minha roupa e principalmente com a minha pele clara.
Olhando para frente, eu vi vários alunos caminhando na minha frente, eles estavam também indo em direção ao portão central da escola. E nenhum deles parecia ter pressa para encontrarem as suas salas de aulas.
De repente um grupo de garotas olhou para trás, quando elas ouviram outra jovem de cabelos cacheados em tonalidade preta e pele morena, gritando desesperadamente.
-Ai meu Deus! Esqueci o meu livro de matemática no ônibus da escola!
Ela girou o seu corpo para trás e correu apressadamente.
Nesse momento o seu corpo se chocou com o meu. Ela olhou lentamente para cima e encontrou o meu rosto sério. A garota desastrosa também viu os meus óculos escuros.
Os livros dela caíram no chão. Eu curvei o meu corpo, tentando abaixar para ajudá-la a catar o seu material didático.
Porém, ela ergueu-se para cima inesperadamente e o topo da sua cabeça atingiu a ponta do meu nariz, e os meus óculos escuros saltaram do meu rosto e caíram no chão.
Ela se assustou novamente, quando ela percebeu que havia se chocado comigo novamente, e dessa vez ela havia machucado o meu nariz e também removido os óculos do meu rosto.
-Des- cul-pa!
Ela disse, e tocou os seus dedos em seus lábios, morrendo de vergonha.
-Meus óculos! Onde estão?
Fiquei olhando o tempo todo para o chão, evitando que ela olhasse em meus olhos. Enquanto eu esfregava levemente a ponta do meu nariz. O local estava sensível após a pancada violenta.
Eu imaginei que o meu nariz pudesse sangrar naquele momento. E isso não seria uma coisa divertida.
Ela percebeu que eu estava com dificuldade em enxergar os meus óculos no chão.
A garota de cabelos cacheados abaixou e finalmente pegou os meus benditos óculos escuros.
-Aqui estão eles.
Disse, ficando ereta, diante de mim, porém eu permaneci olhando para baixo, enquanto ela tentava olhar nos meus olhos.
-Obrigada!
Agradeci e imediatamente coloquei os óculos sobre os meus olhos e caminhei adiante, mantendo distância daquela garota catastrófica e cafona.
As suas botas de cano curto, cor marrom eram horríveis e não combinavam com a sua saia de pregas com xadrez. Além de sua blusa branca com um colete preto por cima.
O coque no alto da sua cabeça havia a envelhecido uns dez anos. Imaginei que nenhum rapaz naquela escola a desejaria como namorada ou até mesmo como colega de classe.
Além de cafona, ela tinha um dom exato para machucar as pessoas.
Ela pegou os seus livros no chão e correu em direção o ônibus da escola, o qual estava parado do outro lado da rua, na frente do colégio.




Aula de matemática
Os alunos ainda estavam procurando lugar para sentar. O professor estava impaciente, já querendo dar inicio a sua aula do dia.
Eu sentei na última cadeira, no canto da sala e um rapaz de cabelos ruivos e olhos marrons sentou-se na minha frente.
Por fim, a garota cafona foi à última aluna a entrar na sala de aula, com a sua pilha de livros imprensados entre os seus braços finos e seus seios não tão amplos.
Ela alongou o seu pescoço e procurou por um lugar para sentar-se, e viu um lugar vazio na quarta fileira.
Antes de sentando em seu assento árduo, ela deitou os seus livros sobre a carteira e olhou para trás, observado os alunos ao seu redor e o seu olhar encarou o meu semblante com os meus óculos escuros.
Ela havia percebido que eu era o rapaz o qual ela havia presenteado com uma pancada no nariz.
A sua testa enrugou e ela voltou a olhar para frente, assim sentando-se em seu bendito assento.
O professor de matemática se apresentou aos alunos do último ano do ensino médio.
Seu nome era Tadeu.
Ele era um homem quarentão, com bigode e barba rala. A sua pele era clara e ele também usava camisa de listas brancas com azul marinho. Até que para a sua idade, ele tinha um corpo em forma, ou seja, ele não tinha barriga avantajada.
Professor Tadeu olhou no rosto de cada aluno dentro da sala de aula, tentando se tornar familiar com cada um deles. Contudo, os seus olhos cor castanhos parou na minha direção.
As suas mãos foram para dentro dos bolsos de sua calça de linho marrom. E após um modesto pigarro, ele finalmente exclamou para uma direção determinada.
-Você com os óculos escuros!
Continuei o encarando seriamente e todos os alunos olharam para trás, em minha direção.
-Não pense que irá assistir as minhas aulas imaginando que está na beira da piscina!
As gargalhadas surgiram pelos quatro cantos da sala, aumentando gradativamente e o professor olhou seriamente para cada um deles com os seus dentes a amostra.
-Eu não quero que a minha aula se torne alvo de risadas!
Os alunos olharam para frente e tornaram a ficarem sérios e assim escondendo novamente os seus dentes, alguns brancos e outros mais amarelados.
Mas eu permaneci olhando para o professor em pé, diante do quadro negro. Ele voltou a olhar para mim ainda mais sério. Imaginando que a sua postura rígida pudesse me intimidar de uma só vez.
-Meu jovem, eu ordeno que tire os seus óculos escuros agora!
Olhei para um lado e tornei a olhar para o professor de matemática, dizendo-o com uma voz branda, porém audível.
- Professor Tadeu, eu não posso assistir as suas aulas sem os meus óculos.
-Por quê? – ele removeu as suas mãos de seus bolsos e cruzou os seus braços sobre o seu peito. –Explique-me isto rapaz.
-Eu uso esses óculos desde quando eu tinha dez anos. Na verdade eu tenho muita dificuldade para enxergar durante o dia. Isso é um problema genético, 50% da minha família sofrem dessa deficiência.
A sala de aula estava totalmente calada. Então o professor Tadeu pareceu menos sério e disse.
-Ok.  Eu irei dar continuidade a nossa aula e ao término das aulas, eu quero você na minha sala.

Todos os alunos voltaram a olhar na minha direção novamente, eu olhei para um lado e concordei com o professor de matemática, apenas sacudindo levemente a minha cabeça.

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